Prefácio
Quando se escreve um livro, ele tem de ser minimamente
coerente, por exemplo a guerra dos tronos onde apesar das reviravoltas da
história tudo é bastante coerente, toda a gente morre!
Um blogue não, não tem de ser coerente, é um organismo vivo,
que evolui com o passar dos anos, com a erosão dos elementos, e hiberna como os
ursos…
Se perguntarmos a um grupo de pais ou mães aleatórios porque
razão foram pais, as respostas irão certamente variar, porque queriam alguém para
cuidar deles, porque a família pressionava, porque era o que era suposto fazer,
porque não queriam estar sozinhos, porque se descuidaram, porque queriam um
herdeiro, porque queriam enganar a sua mortalidade e viver através da sua descendência,
and so on…sem querer entrar por juízos de valores, todos estes argumentos me
causam repulsa, não é que perceba muito disto de paternidade, mas todas estas
razões me parecem péssimas para se ser pai, e acabam por justificar os inúmeros
atropelos que se cometem contra as crianças. Eu gosto de pensar que a melhor
razão para se ter uma criança é o amor, o amor a outra pessoa que se
materializa num outro ser, num pequeno ser que nos ensina a amar melhor,
diferente, a ser melhor pessoa, a crescer e compreender melhor a mecânica deste
mundo.
Com a mesma força com que o homo sapiens esgrime os argumentos
em cima, outros há que enveredam por uma retórica contrária, são novos demais,
não gostam de crianças, não têm dinheiro nem grandes condições para tal, não
querem a responsabilidade, não têm jeito e por ai fora. Eu bem os conheço pois
usei um bom quinhão deles. A perda da independência, as constantes chamadas e
atenção, a perda de tempo para estar comigo. Esse é o capacete que melhor me
encaixa.
Depois temos a tempestade perfeita, quando todo o paragrafo
acima faz sentido e ainda se junta a frase,
(este mundo é um caos, trazer uma criança a este mundo??). Sobre isto tenho
algo a dizer… Lembro-me, há muito tempo atrás, ainda não tinha a carta de condução,
de um livro das selecções da reader Digest sobre desastres e catástrofes, uma galeria
enciclopédica de guerras, doenças e sismos cada um pior que o anterior. O livro
acaba no entanto com uma imagem de esperança, um texto bonito a lembrar que a
natureza arranja sempre uma maneira de dar a volta por cima. Esse texto era
abrilhantado por uma fotografia de uma floresta em tons de cinza, após um
violento incêndio, no centro nascia um pequeno pinheiro, um frágil arbusto a
mostrar a teimosia da natureza.
E está o mundo virado do avesso? Toda a gente diz que sim,
mas duvido que mais de 90% da população se aperceba o quanto do avesso está, a
situação é bem pior do que se julga, muito pior, e se o Zé da rua anónimo mesmo
alienado com futebol e telenovelas acha que o mundo está mau, se soubesse
metade do que sei atirava-se ao mar, quanto mais ter filhos. Mas é essa uma
razão para não se deixar netos aos avós?
Não! Mesmo que não constatasse a felicidade que o Gabriel
trás ao coração dos avós, o exercício de responder à questão acima está ferida de
vício se pensarmos numa lógica cristã e de zonas de influência. Trazer uma
criança ao mundo é sempre um acto bonito, recusá-lo porque existe o mal é apenas
alimentar esse mesmo mal, é embarcar numa espiral depressiva e anti-humana que
eu recuso liminarmente.
Lembrava-se com agonia, a personagem principal do livro 1984,
do sacrifício da sua mãe para que este se mantivesse vivo, um acto de amor
incondicional e gratuito, que ele não compreendera na altura pela sua
imaturidade. Espero sinceramente não o ter de fazer, num futuro próximo em que
tu, Gabriel, não consigas compreender. A tua chegada ao mundo foi a mais serena
que se pode desejar, e bem gostaríamos, eu e a tua mãe, que assim permanece-se
por muitas décadas, mas bem sabemos que nem sempre será assim. Havemos de nos
separar na escola e noutras ocasiões, vais zangar-te connosco, mas acredita, vai custar-nos mais a
nós que a ti. Vais cair e magoar-te mas não te preocupes que todas as feridas
saram, as mais difíceis são mesmo as que causamos aos outros.
Vou gostar de brincar contigo, mas não te chateies se eu
quiser estar sozinho, o pai gosta.
Aproveito para pedir desculpa pelas vezes que “for ao lado”,
mas não duvides que a intenção é sempre boa, sempre a pensar no teu bem.
Em última análise os pais têm sempre razão, mas podes
discordar à vontade.
Quando deixares os pacotes de bolachas vazios nos armários a
mãe vai ralhar mas gosta de ti à mesma.
Se te disserem que não consegues, e mesmo que acredites,
lembra-te, não existe gene para o espírito humano.
Um dia, quando estiveres a trabalhar e cheio de responsabilidades,
e que ser bebé é que é bom, lembra-te que no dia em que escrevo estas linhas ainda
aprendias a gatinhar e foi com muito esforço que percorreste os 0,5metros só
para chegares ao brinquedo.
E que a sopa não tem sal…
Não te zangues se apesar de já conseguires ler estas tímidas
linhas a dizer que gosto ti (à maneira do pai), o pai ainda não te deixe tocar
na colecção de minerais.