domingo, maio 18, 2014

Para ti



Prefácio

Quando se escreve um livro, ele tem de ser minimamente coerente, por exemplo a guerra dos tronos onde apesar das reviravoltas da história tudo é bastante coerente, toda a gente morre!
Um blogue não, não tem de ser coerente, é um organismo vivo, que evolui com o passar dos anos, com a erosão dos elementos, e hiberna como os ursos…


Se perguntarmos a um grupo de pais ou mães aleatórios porque razão foram pais, as respostas irão certamente variar, porque queriam alguém para cuidar deles, porque a família pressionava, porque era o que era suposto fazer, porque não queriam estar sozinhos, porque se descuidaram, porque queriam um herdeiro, porque queriam enganar a sua mortalidade e viver através da sua descendência, and so on…sem querer entrar por juízos de valores, todos estes argumentos me causam repulsa, não é que perceba muito disto de paternidade, mas todas estas razões me parecem péssimas para se ser pai, e acabam por justificar os inúmeros atropelos que se cometem contra as crianças. Eu gosto de pensar que a melhor razão para se ter uma criança é o amor, o amor a outra pessoa que se materializa num outro ser, num pequeno ser que nos ensina a amar melhor, diferente, a ser melhor pessoa, a crescer e compreender melhor a mecânica deste mundo.

Com a mesma força com que o homo sapiens esgrime os argumentos em cima, outros há que enveredam por uma retórica contrária, são novos demais, não gostam de crianças, não têm dinheiro nem grandes condições para tal, não querem a responsabilidade, não têm jeito e por ai fora. Eu bem os conheço pois usei um bom quinhão deles. A perda da independência, as constantes chamadas e atenção, a perda de tempo para estar comigo. Esse é o capacete que melhor me encaixa.

Depois temos a tempestade perfeita, quando todo o paragrafo acima faz sentido e ainda se junta a frase, (este mundo é um caos, trazer uma criança a este mundo??). Sobre isto tenho algo a dizer… Lembro-me, há muito tempo atrás, ainda não tinha a carta de condução, de um livro das selecções da reader Digest sobre desastres e catástrofes, uma galeria enciclopédica de guerras, doenças e sismos cada um pior que o anterior. O livro acaba no entanto com uma imagem de esperança, um texto bonito a lembrar que a natureza arranja sempre uma maneira de dar a volta por cima. Esse texto era abrilhantado por uma fotografia de uma floresta em tons de cinza, após um violento incêndio, no centro nascia um pequeno pinheiro, um frágil arbusto a mostrar a teimosia da natureza. 

E está o mundo virado do avesso? Toda a gente diz que sim, mas duvido que mais de 90% da população se aperceba o quanto do avesso está, a situação é bem pior do que se julga, muito pior, e se o Zé da rua anónimo mesmo alienado com futebol e telenovelas acha que o mundo está mau, se soubesse metade do que sei atirava-se ao mar, quanto mais ter filhos. Mas é essa uma razão para não se deixar netos aos avós?

Não! Mesmo que não constatasse a felicidade que o Gabriel trás ao coração dos avós, o exercício de responder à questão acima está ferida de vício se pensarmos numa lógica cristã e de zonas de influência. Trazer uma criança ao mundo é sempre um acto bonito, recusá-lo porque existe o mal é apenas alimentar esse mesmo mal, é embarcar numa espiral depressiva e anti-humana que eu recuso liminarmente.

Lembrava-se com agonia, a personagem principal do livro 1984, do sacrifício da sua mãe para que este se mantivesse vivo, um acto de amor incondicional e gratuito, que ele não compreendera na altura pela sua imaturidade. Espero sinceramente não o ter de fazer, num futuro próximo em que tu, Gabriel, não consigas compreender. A tua chegada ao mundo foi a mais serena que se pode desejar, e bem gostaríamos, eu e a tua mãe, que assim permanece-se por muitas décadas, mas bem sabemos que nem sempre será assim. Havemos de nos separar na escola e noutras ocasiões, vais zangar-te connosco, mas acredita, vai custar-nos mais a nós que a ti. Vais cair e magoar-te mas não te preocupes que todas as feridas saram, as mais difíceis são mesmo as que causamos aos outros. 

Vou gostar de brincar contigo, mas não te chateies se eu quiser estar sozinho, o pai gosta. 

Aproveito para pedir desculpa pelas vezes que “for ao lado”, mas não duvides que a intenção é sempre boa, sempre a pensar no teu bem. 

Em última análise os pais têm sempre razão, mas podes discordar à vontade.

Quando deixares os pacotes de bolachas vazios nos armários a mãe vai ralhar mas gosta de ti à mesma.

Se te disserem que não consegues, e mesmo que acredites, lembra-te, não existe gene para o espírito humano.

Um dia, quando estiveres a trabalhar e cheio de responsabilidades, e que ser bebé é que é bom, lembra-te que no dia em que escrevo estas linhas ainda aprendias a gatinhar e foi com muito esforço que percorreste os 0,5metros só para chegares ao brinquedo.

E que a sopa não tem sal…

Não te zangues se apesar de já conseguires ler estas tímidas linhas a dizer que gosto ti (à maneira do pai), o pai ainda não te deixe tocar na colecção de minerais.  


 
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